Já tinha visto isto há tempos e tinha-me disso esquecido. Andrés Trapiello decidiu-se a "traduzir" para castelhano actual o Don Quijote. Miguel Cervantes morreu a 23 de Abril de 1616. A ideia é fazê-lo renascer porque, alegadamente, os nossos contemporâneos não conseguiriam entender a língua em que escreveu nem sequer o sentido do vocabulário que usou. O livro é este aqui. O autor da versão "actualizada" está aqui.
Li isto e lembrei-me de uma aventura real que é hoje tempo de poder contar. A Editorial Presença havia-me solicitado um texto de apresentação ao Príncipe de Maquiavel, o que redigi e por aí circula, creio que com desinteresse da maioria apesar de ser uma ensaio inovador relativamente à visão diabolizante do "Secretário" florentino que sem caução fez escola.
Honrado pelo convite e ao mesmo tempo assustado com o encargo, esperava-me, porém, uma surpresa: é que o editor não se tinha apercebido que a versão que me apresentara para o efeito não era, afinal, a original, finalmente traduzida do "italiano", mas sim uma versão aaggiornata, ideia igual à do Trapiello cervantino, como esta da autoria de Giuseppe Bonghi [hoje está aqui] ou esta outra de G. Pedullà [aqui] ou aquela que me chegou da autoria de Piero Melograni [ver aqui a explicação].
Desfeito o equívoco, pois que saltava à vista que algo de errado se passava e sobretudo o facsimile da edição original não deixava margem para equívocos, seria feita uma nova tradução que foi a que serviu de base à que já corre em mais do que uma edição.
Em suma, ficou-me a questão: será correcto este modo de proceder, modificando mais do que o vocabulário, afinal, o próprio estilo da escrita? Ou estaremos ante um facilitismo face aos leitores ávidos de pressa e preguiçosos no esforço - para quem segurar um livro entre as mãos já é um peso insuportável - para os quais se poupa o terem de ir à procura do significado de um termo, do contexto em que surgiu um modo de dizer?
É que, é claro, há sempre a possibilidade de, através de um equilibrado jogo de notas, explicar o que não for evidente a um leitor menos cultivado. Mas isso, para o mercado editorial passa a ser um encargo no custo e as regras comerciais tentam fazer os clássicos, pois não estão sujeitos a direito de autor, entrarem no "grande público", o quer que isso seja.
Daí que estas versões, variações, adulterações, tenham os seus cultores e eruditos que as caucionam. «Os exércitos e os notáveis fidalgos que das costas de Portugal por mares totalmente desconhecidos foram para além do Ceilão...». Conhecem? É o começo dos Lusíadas, um poema bué de baril...